Há exatos dez anos aconteceu o incêndio na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Entre 1.000 e 1.500 pessoas estavam na casa noturna, segundo a Polícia Militar (PM), em uma festa organizada por estudantes de seis cursos da Universidade Federal local. A capacidade do espaço era de 691 pessoas.
Naquela noite, a banda Gurizada Fandagueira se apresentava. No meio do show, o vocalista acendeu um sinalizador feito para uso em local externo. As faíscas atingiram o teto, incendiando a espuma de isolamento acústico, que não tinha proteção contra fogo.
Além do incêndio que se alastrou, grande quantidade de fumaça tóxica se espalhou pela boate.
Não houve comunicação entre os seguranças do palco e os da área de saída, que proibiram a passagem pela única porta da boate por acharem que se tratava de uma briga ou de jovens que queriam sair sem pagar. Muitas pessoas também confundiram a porta do banheiro com a porta de emergência.
Um dos seguranças revelou que, em mais de um ano trabalhando na casa noturna, não recebeu treinamento contra incêndio e que não existiam saídas de emergência.
Como resultado do incêndio, 242 pessoas, a maioria jovens universitários, morreram e mais de 600 ficaram feridas.
Busca por justiça
Um dia depois do acontecimento, em 28 de janeiro de 2013, foi decretada a prisão temporária dos sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, e dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos.
Poucos dias após o incêndio, o procurador-geral de Justiça expediu uma recomendação a todos os promotores do Rio Grande do Sul para que exigissem dos “órgãos estaduais e municipais a fiscalização imediata de estabelecimentos e eventos, públicos e privados, de qualquer natureza, onde haja aglomeração de pessoas”.
Um mês depois, o procurador-geral recebeu da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) um abaixo-assinado com mais de 28 mil assinaturas pedindo apoio do Ministério Público em busca por Justiça.
Em maio de 2013, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) revoga a prisão preventiva dos quatro acusados por unanimidade, que passaram a responder ao processo em liberdade.
Em 18 de junho de 2019, após anos de encaminhamento do processo, que também resultou no arquivamento de ações contra os entes públicos, a 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os quatro acusados –os dois sócios e os dois integrantes da banda– fossem a júri popular.
O julgamento em si só começou em 1° de dezembro de 2021, terminando no dia 10 do mesmo mês, com condenações por dolo eventual.
As penas foram estabelecidas da seguinte maneira:
Elissandro Callegaro Spohr: 22 anos e 6 meses de prisão
Mauro Londero Hoffmann: 19 anos e 6 meses de prisão
Marcelo de Jesus dos Santos: 18 anos de prisão
Luciano Bonilha Leão: 18 anos de prisão
Impunidade: Justiça anula o julgamento
Porém, oito meses depois das condenações, o julgamento foi anulado pela 1ª Câmara Criminal do TJ-RS, libertando os quatro réus.
A defesa deles pediu redimensionamento das penas, alegando nulidades no processo e na solenidade, além de considerarem que a decisão não correspondeu às provas levantadas.
Os magistrados acataram o entendimento de que, entre outros pontos, os sorteios dos jurados não ocorreram dentro do prazo estabelecido em lei. A decisão dos desembargadores também considerou que as defesas foram impossibilitadas de acessar antecipadamente a lista dos jurados.
Integrante da associação dos familiares, Paulo Carvalho criticou a decisão da Justiça. Segundo ele, “anulação se baseou em detalhes processuais e que não tem nada, nada que prejudicasse o julgamento”.
Ele é pai de Rafael Nunes de Carvalho, que tinha 32 anos e morreu no incêndio.
Gustavo Sampaio, professor de Direito Constitucional da UFF, explica que a anulação não discorre sobre “o mérito da decisão, mas sobre o devido processo penal”.
“A nulidade acontece quando a sentença foi feita de modo que impacta o rito do processo. Isso depende de caso para caso. Quanto às regras processuais, elas estão previstas na lei. Se houver violação, pode caber a nulidade. Isso não quer dizer que o tribunal do júri não tem poder para condenar, mas sim que ele reveja a decisão”, diz Sampaio.
De acordo com Ribeiro, no caso de essas instâncias rejeitarem um pedido do MP — Supremo Tribunal Federal (STF) ou Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o processo seguiria como está agora: um novo júri seria marcado.
Se acatarem o pedido, ou seja, mantendo as prisões, a defesa dos condenados ainda poderia recorrer.
Homenagens
Desde quarta-feira (25), uma série de homenagens está sendo realizada pela AVTSM junto a outras organizações e com apoio da prefeitura.
“As ações realizadas têm como intuito preservar a memória daqueles que partiram e construir um futuro seguro para os que aqui ficaram”, pontua a AVTSM. A intervenção foi nomeada “27 de janeiro: resgatar a memória é construir o futuro”.
Neste dia 27, quando se completam os dez anos da tragédia, haverá um culto ecumênico às 10h na praça Saldanha Marinho. Lá também, às 13h45, haverá soltura de balões.
No decorrer da tarde, haverá uma série de diálogos com representantes da AVTSM e especialistas sobre o processo legal envolvendo o caso e também sobre a importância da prevenção contra incêndios.
Também estará presente uma representante da associação Familias Por La Vida, que reúne famílias e sobreviventes da tragédia de Cromañón, também um incêndio em casa noturna, na Argentina, ocorrido em 2004.
À noite, haverá participação do coletivo “Kiss: que não se repita”, criado no fim de 2013 para “ser um espaço de desabafo individual sobre o luto vivido após o incêndio”. Eles realizam projetos anuais e mobilizações presenciais, se apresentando como “maior rede de informações e de memória sobre o incêndio”.
No sábado (28), às 20h, haverá uma missa em homenagem às 242 pessoas que morreram no incêndio.
Produções audiovisuais
A Netflix lançou a série “Todo Dia a Mesma Noite”, inspirada no livro de mesmo nome da jornalista Daniela Arbex. Em cinco episódios, a produção mostra, de forma ficcional, o que aconteceu em 2013.
A trama acompanha familiares das vítimas em uma busca incessante por justiça. Além disso, a produção se propõe a fazer um retrato do sistema judiciário, contando como aconteceram as etapas do julgamento e a dor da impunidade.
À CNN, ela falou que a tragédia não deve cair no esquecimento. “Eu falo sempre que a dor dói mais quando ela é ignorada. Então, a gente precisa mostrar para o país que a omissão coletiva gera barbárie. Nesse caso, e em todas as outras tragédias do Brasil, se a gente não construir memória, a gente repete”, ressaltou.
A GlopoPlay também lançou o documentário “Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria”, que tem como diretor o jornalista Marcelo Canellas.
Memorial
Após o fim do processo que busca a responsabilização pelo incêndio na boate, o prédio onde funcionou a casa noturna será demolido e dará lugar a um memorial.
A fachada terá um muro de concreto e tijolos que bloqueia a visão de praticamente todo interior. A entrada e saída fica em uma abertura no meio. Segundo o arquiteto responsável pelo projeto do memorial, “a austeridade da fachada representa o luto”.
Na parte central do interior há um jardim circular cercado por 242 pilares de madeira. Cada um deles trará o nome de uma vítima e um suporte para posicionar uma flor.
Haverá também três ambientes além do jardim: um auditório; uma sala multiuso, que abrigará acervo de uma exposição permanente multimídia; e uma “sala única”, que abrigará a sede da AVTSM, assim como demais áreas de reunião e atividades coletivas.
Todas essas áreas poderão ser acessadas por meio de “portas pivotantes” constituídas pelos pilares de madeira em trechos específicos.
*CNN
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